PAGINA 20 - On line
Rio Branco-AC, 29 de abril de 200
ESPECIAL
PAPO DE ÍNDIO
Txai Terri Valle de Aquino &
Marcelo Piedrafita Iglesias
Petróleo, gás, estradas e populações
tradicionais no Alto Juruá
Edilene Coffaci de Lima, Mauro Barbosa de
Almeida & Marcelo Piedrafita Iglesias
O mês de fevereiro chegou com a
notícia de que o senador Tião Viana
conseguiu assegurar recursos no Orçamento Geral da União para incluir o
Estado do Acre na agenda das prospecções a serem licitadas pela Agência
Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
De
lá para cá muita tinta correu sobre o assunto e alguém já escreveu, com
certa ironia, que, antes mesmo da prospecção ser iniciada, a existência
de petróleo e gás no Acre é tida como favas contadas. Parecem ser favas
contadas também tudo o que se alardeia sobre a riqueza e os benefícios
que advirão. Com a exploração do petróleo, o Acre supostamente poderia
reviver o período de opulência econômica do início da exploração da
borracha na virada do século XX. Não custa recordar que dentre os
resultados dessa opulência, cantada em verso, prosa e, mais
recentemente, romanceada na minissérie “Amazônia”, inúmeras populações
indígenas desapareceram e os seringueiros e índios foram submetidos a
condições de vida que não deixavam nada a dever à escravidão, recém
abolida oficialmente no Brasil quando o boom da borracha começava.
De
fato, alardeia-se ainda que “o Acre poderá ter no futuro uma nova
grande fonte geradora de recursos, para investir na melhoria da
qualidade de vida de sua população”. Mas a simples exploração de
petróleo e gás trará automaticamente essa melhoria? Como serão
repartidos os prejuízos e benefícios advindos da exploração, e para
quem irão os maiores lucros? Que entidades regulatórias tratarão desse
tema? Qual será o papel das populações indígenas e das comunidades
rurais nessas entidades? Essas perguntas são sonegadas nas matérias na
imprensa e nos argumentos daqueles favoráveis à iniciativa.
Apesar
da avaliação do que venha a ser riqueza, pujança, bem-estar e fartura
depender muito da perspectiva daquele que fala, também tomaremos como
hipótese inicial de que a exploração de petróleo e gás no Acre,
particularmente no Alto Juruá, são favas contadas, para podermos
refletir sobre algumas de suas possíveis implicações futuras.
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Projetos viários e energéticos previstosno
IIRSA para a região Ucayali-Acre.
(Fonte: IIRSA)
Exploração em áreas protegidas?
A
simples idéia da prospecção reacende no horizonte desacertos antigos.
Na Serra do Divisor, o Departamento Nacional da Produção Mineral e a
Petrobrás realizaram prospecções nas décadas de 1930, 1960 e 1970, como
mostrou o professor Alceu Ranzi, a 4 de abril, no blog do jornalista
Altino Machado.
No Parque Nacional da Serra do
Divisor (PNSD), onde se suspeita mais fortemente que exista petróleo em
abundância, em meados dos anos de 1990, algumas famílias começaram a
reivindicar o reconhecimento de sua identidade indígena – eram e são os
Nawa. Esses índios foram então duramente rechaçados por agentes
governamentais e não-governamentais, que questionaram, inclusive na
Justiça Federal, a autenticidade de sua indianidade, alegando que esta
só teria emergido motivada pelo interesse de ficarem no Parque. Como se
sabe, a legislação ambiental brasileira não prevê a presença humana em
parques nacionais. Com muito custo, e como resultado de uma decisão da
Justiça, balizada numa perícia antropológica, os Nawa garantiram, em
2003, seu direito de permanecer num território que outrora ocuparam
incontestemente – uma conquista respaldada na Constituição de 1988, que
estabelece que os índios têm precedência histórica na ocupação de
qualquer território, ainda que seja um parque nacional, e determina ao
governo federal a demarcação e proteção das terras por eles
tradicionalmente ocupadas.
O caso dos Nawa leva a uma
pergunta simples que fazemos a alguns dos órgãos oficiais e das
organizações não-governamentais que não se manifestaram ainda sobre a
prospecção de petróleo, ou que, com alguma discrição, preferiram mudar
de idéia no curso do debate: se índios não deveriam permanecer no PNSD,
petróleo e gás devem ser ali explorados? Populações tradicionais devem
ser removidas do Parque para que exatamente? Para a entrada de uma
grande empresa exploradora de petróleo?
Três dias após
a visita promovida por Tião Viana à “Província Petrolífera de Urucu”,
este Página 20, reproduzindo um release da assessoria de imprensa do
senador, registrou: “os técnicos deixaram claro para a comitiva que a
Petrobrás nunca ‘praticou, ousou e sequer pensou’ em explorar derivados
do petróleo em terras indígenas e em unidades de conservação, pois a
legislação ambiental brasileira não permite que tal atividade ocorra
nessas áreas protegidas por força da Constituição do país”. Ainda bem,
mas não custa acompanhar. Em países onde a legislação é menos rígida,
como no Peru e Equador, a empresa não se faz de rogada, e não demonstra
o mesmo compromisso com a agenda socioambiental – como registrado neste
mesma coluna a 15 de abril.
Se as esperanças de
encontrar “ouro negro” estão depositadas no Alto Juruá, cabe lembrar,
uma vez mais, que estão ali situadas 29 terras indígenas e boa parte
das áreas de conservação do Acre: três reservas extrativistas (Alto
Juruá, Riozinho do Liberdade e Alto Tarauacá), três florestas estaduais
e o PNSD. Além dos seringais ocupados por populações que faz um século
vivem do extrativismo e da agricultura, há na região 32 projetos
destinados pelo Incra, sob diferentes modalidades, a famílias
beneficiárias da reforma agrária.
A exploração de
petróleo, assim como de outras riquezas minerais, depende de lei
específica para acontecer em terras indígenas, como disposto nos art.
176, §1º, e 231, §3º, da Constituição Federal. Essa lei específica
ainda não foi formulada, discutida ou aprovada pelo Congresso Nacional,
e enquanto não existir, não poderá ocorrer qualquer exploração de
recursos minerais em terras indígenas. Por sua vez, o art. 28 do SNUC
estabelece: “São proibidas, nas unidades de conservação, quaisquer
alterações, atividades ou modalidades de utilização em desacordo com os
seus objetivos, o seu Plano de Manejo e seus regulamentos”. É certo que
os técnicos da ANP, da Petrobrás e o senador Tião Viana sabem disso. Os
movimentos sociais e as organizações indígenas devem também ter isto
sempre em mente. E estarem atentos a iniciativas como o Acórdão
560/2007, do Plenário do Tribunal de Contas da União, de 11 de abril, e
o projeto de lei em vias de ser apresentado pelo governo ao Congresso,
que visam abrir as terras indígenas à exploração mineral, e podem gerar
jurisprudência para viabilizar o início da exploração petróleo e gás
nesses mesmos territórios.
É fundamental ressaltar
ainda que os resultados do Zoneamento Econômico-Ecológico do Acre (Fase
II) – produzidos em cinco anos por técnicos de órgãos governamentais e
consultores especializados, discutidos nas sedes municipais,
referendados pelas câmaras da Comissão Estadual do ZEE, apresentados à
Assembléia Legislativa pelos Secretários de Planejamento e de Meio
Ambiente e, finalmente, aprovados pelos deputados em dezembro passado –
não recomendam, ou mesmo contemplam, a possibilidade de exploração de
petróleo e gás em território acreano.
Por fim, cabe
destacar a firme oposição às atividades de prospecção e exploração
desses recursos em terras indígenas, já demarcadas e em processo de
reconhecimento oficial, ou em regiões que possam resultar em impactos
diretos ou indiretos sobre esses territórios, firmada por três
organizações e 20 povos indígenas do Acre, sul do Amazonas e noroeste
de Rondônia em documento tornado público em 14 de abril.
Escalas regional e binacional
Chama
atenção que muito tem se destacado sobre a possibilidade de diminuição,
e inclusive sobre a inexistência, dos impactos ambientais na exploração
de petróleo e gás. A comitiva que, por poucas horas, realizou uma
visita guiada pela Petrobrás para conferir o tão propagandeado modelo
exemplar de Urucu, afirmou ter voltado impressionada com o “mínimo
impacto” da exploração, dando margem a que essa visão se consolidasse
como verdade absoluta a fundamentar os argumentos daqueles favoráveis à
prospecção. Os últimos três Papos de Índio, por sua vez, receberam a
esclarecedora contribuição do professor Oswaldo Sevá, da Unicamp, que
destacou, em outra direção, a impropriedade de se imaginar que a
exploração petrolífera possa se fazer com baixo impacto ambiental ou
com a ausência de riscos significativos.
Visando também
colaborar com a problematização da esperança hoje depositada na
prospecção, perguntamos: como se pensam os impactos sociais e
ambientais de uma futura exploração? Como se mensuram os impactos sobre
a população acreana, particularmente sobre aquela parcela que, ao longo
de décadas e gerações, desenvolveu formas sustentáveis de relação com a
floresta e a mantém firmemente em pé?
Não
pretendemos, nestas poucas linhas, esgotar o assunto, mas cabe indagar:
caso haja exploração de petróleo e gás no Alto Juruá, como serão esses
produtos dali transportados? Um impacto – e não devemos jamais perder
isso de vista – gera outro, numa onda que se propaga, alcançando
escalas e magnitudes crescentes.
Planeja-se escoar essa
produção pelo Juruá e por água até Manaus, pelas estradas ou por meio
da construção de um oleoduto? A alternativa de transporte pelo Juruá
sequer merece ser comentada. Será pela BR-364, de Cruzeiro do Sul até
Rio Branco, para seguir para o restante do Brasil e, pela BR-317, para
o Peru, pela Rodovia Transoceânica? Haveria uma terceira alternativa,
ainda não comentada: realizar outra integração rodoviária com o Peru,
estendendo a BR-364, cortando florestas dos rios Juruá e Ucayali, aí
incluído o PNSD, até Pucallpa, capital do Departamento do Ucayali. Ou
seja, por uma segunda estrada binacional até o Pacífico. Se for por um
oleoduto/gasoduto, quais seriam os traçados possíveis? Para Coari,
rasgando imenso trecho de florestas no alto e médio cursos do rio
Juruá? Para oeste, para o Peru?
Em qualquer uma dessas
situações, para além dos desdobramentos da exploração localizada de
petróleo e gás, novos impactos socioambientais, nenhum deles “mínimo”,
se configuram. As estradas que permitirão escoar a produção de petróleo
e gás não poderão servir também para escoar madeira, explorada
ilegalmente no Brasil? Para abastecer com gado mercados peruanos? Se a
exploração ilegal de madeira é problema hoje – inclusive feita por
peruanos que a bandeiam para o lado de lá –, como será quando novas
estradas forem abertas? As rodovias não favorecerão o incremento do
tráfico de drogas, problema constante no Alto Juruá há pelo menos duas
décadas? O desmatamento e a especulação e expropriação fundiária não
deverão também ganhar força com a valorização da terra no entorno
dessas vias?
O fato incontestável é que os planos de
exploração petrolífera na fronteira acreano-peruana, de exportação de
gado para o Peru e da conexão viária até Pucallpa estão interligados,
podendo levar a uma integração irreversível, de enormes conseqüências,
entre o sudoeste amazônico e os países andinos, no sentido leste-oeste.
Já contemplados na Iniciativa de Integração da Infra-Estrutura Regional
da América do Sul (IIRSA), os interesses geopolíticos, financeiros,
energéticos, viários e comerciais associados a essa ligação
transamazônica, no sentido Rio Branco-Cruzeiro do Sul-Pucallpa, gerarão
impactos, diretos e indiretos, potencialmente gigantescos. A este
respeito, cabe mencionar o valioso estudo “Geopolítica nas fronteiras
acreanas com o Peru e os povos indígenas”, escrito por Marcelo
Piedrafita e Terri Aquino, em 2005, para o ZEE.
No
âmbito do Eixo do Amazonas, do IIRSA, os investimentos necessários à
“Interconexão Vial” Cruzeiro do Sul-Pucallpa estão estimados em US$ 247
milhões e à “Interconexão Energética” entre essas cidades em US$ 40
milhões. Recentes acordos binacionais reforçam esse cenário. Em
Comunicado de 9 de novembro último, os presidentes Lula e Alan García
ressaltaram a “alta prioridade” atribuída por seus governos ao
“processo de integração da infra-estrutura física” entre ambos países,
concordando em apoiar a conclusão da Rodovia Transocêanica e o acesso
rodoviário entre Cruzeiro e Pucallpa. Registraram ainda memorando
assinado pelos Ministérios de Minas e Energia, estabelecendo um
mecanismo de “consulta e cooperação bilateral em matéria energética,
geológica e de mineração”, e a relevância do “Memorando de Entendimento
para o desenvolvimento de investimentos em exploração, produção,
transporte, transformação e distribuição de hidrocarbonetos”, firmado
entre a Petrobrás, a Petroperú e a Perúpetro a 27 de setembro.
No
Congresso, integrantes da bancada acreana, oriundos do Juruá, têm se
mobilizado para fazer a agenda da integração avançar. Na Câmara,
Gladson Cameli (PP) e Iderlei Cordeiro (PPS) são titulares da Comissão
de Viação e Transporte e suplentes da Comissão da Amazônia. O segundo
acaba de assumir a coordenação da Frente Parlamentar Brasil-Peru. Antes
enviara ao Ministro de Planejamento requerimento de informação sobre “a
perspectiva de implementação da Agenda IIRSA” com recursos do Programa
de Aceleração do Crescimento (PAC), “o andamento dos projetos
referentes ao Eixo do Amazonas e do Grupo Acesso à Hidrovia de
Ucayali”, “a perspectiva de execução da conexão Pucallpa-Cruzeiro do
Sul nos termos do PAC” e “a prioridade da ligação viária do Brasil com
o Peru através do Vale do Juruá”. Mantivera audiência com a diretoria
da Agência Nacional de Transportes Terrestres, solicitando estudos para
a extensão da BR-364 até a fronteira peruana, de forma a subsidiar
futuros entendimentos bilaterais para concretizar a via binacional. E
com o Secretário de Relações Exteriores do Agronegócio do Ministério da
Agricultura, para se informar dos requisitos de certificação sanitária
necessários à exportação de carne bovina a Pucallpa e à importação de
frutas, verduras e peixes e seus derivados. A 24 de abril, compareceu à
Comissão da Amazônia o Secretário de Planejamento e Investimento
Estratégico, do Ministério do Planejamento, e afirmou que a estrada até
Pucallpa é viável sob o aspecto econômico, mas amplas consultas serão
necessárias junto a índios, seringueiros e outros setores devido aos
imensos impactos ambientais que sua abertura acarretará.
Ao
lermos os jornais acreanos, tudo se passa como se o que estivesse hoje
em jogo no Alto Juruá fossem iniciativas desarticuladas: o asfaltamento
da BR-364 até Cruzeiro, o intercâmbio comercial com Pucallpa, o anúncio
da exploração petrolífera (sem especificar trajetos possíveis para o
seu escoamento) e, em letra miúda, as discussões sobre ações
binacionais para a integração aérea e viária. É ingenuidade supor, pelo
exposto acima, que a exploração de petróleo e gás se resuma a aumentar
as arrecadações estadual e municipais para uso em fins sociais e
ecológicos. Custa crer, ainda, que essa agenda da ligação viária e
energética esteja em construção ante nossos olhos, sem que a sociedade
acreana e brasileira esteja discutindo os efeitos previsíveis das obras
de infra-estrutura, dos fluxos de capitais, pessoas e mercadorias que
serão iniciados, dos deslocamentos migratórios para os já precários
centros urbanos e, ainda, dos impactos sobre a floresta e as populações
tradicionais que nela habitam. Somados, os resultados desses processos
dificilmente ficarão atrás daqueles que transformaram profundamente Rio
Branco e o Vale do Acre em décadas recentes, de triste memória.
Impactos “localizados”, planos regionais
Lembremos
que, em 2003, no início das discussões sobre a integração com o
Departamento do Ucayali, o então governador Jorge Viana chegou a propor
que uma faixa de 50 quilômetros ao longo da fronteira com o Peru fosse
preservada de qualquer exploração, para proteger o meio ambiente e
garantir as boas relações entre as populações locais. Essa proposta foi
novamente defendida pelo ex-governador em encontro com o então
presidente Alejandro Toledo, em Lima, em março de 2004, no qual as
invasões e os prejuízos ambientais promovidos por madeireiros peruanos
na Terra Indígena (TI) Kampa do Rio Amônea e no PNSD foram claramente
colocados como obstáculo ao avanço da integração.
No
atual contexto, trata-se novamente não apenas de manter a integridade e
viabilidade do PNSD, das reservas extrativistas e terras indígenas já
existentes. Antecipando-se às enormes conseqüências daquele modelo de
integração, trata-se de dar transparência aos planos de trajetos tanto
de estradas como de possíveis gasodutos/oleodutos, para subsidiar a
criação de zonas de proteção em ambos países e a elaboração, com ampla
participação, de planos de zoneamento regional e de mitigação e
compensação dos impactos socioambientais. Há exemplos, em outros
países, de discussões públicas de projetos energéticos similares que
levaram a soluções de longo prazo, contemplando efetivamente os
direitos de populações indígenas e tradicionais. No caso do
gasoduto-oleoduto do Vale do Mackenzie, no Canadá, uma medida foi a
criação de um escritório de apoio aos grupos aborígenes e a outros
interessados, com a responsabilidade de apoiar as comunidades nativas e
demais moradores locais a fortalecer sua capacidade organizacional para
participarem em todos os aspectos do projeto; coordenar e estabelecer
relações de trabalho efetivas com órgãos de governo, empresas e outros
atores; coordenar as contribuições sobre os aspectos ambientais; e
apoiar a pesquisa científica em relação à avaliação da construção e da
operação do gasoduto. Mas as discussões e essas medidas foram feitas
antes, e não depois, dos fatos consumados.
Para
ficarmos apenas com os impactos gerados pelas estradas no Acre, vale
lembrar que a pavimentação da BR-364, no trecho entre Cruzeiro do Sul e
Rio Branco, ainda não concluída, não previa impactos dessa monta.
Quando os estudos antropológicos para a revisão dos EIA-RIMAs do
asfaltamento da BR-364 e da BR-317 foram elaborados, em 2001, a
exploração do “ouro negro” não constava – pelo menos de modo
transparente – na agenda dos representantes políticos. Tendo em conta
que a BR-364 corta por 18 quilômetros a TI Campinas Katukina,
fortemente impactada pela pavimentação, será preciso realizar novos
estudos, ali e em todo o entorno da estrada, para avaliar os impactos
socioambientais e a viabilidade do seu uso para transportar o que for
produzido a partir da exploração petrolífera e/ou de gás.
Algumas
das medidas definidas para minimizar o impacto do asfaltamento da
BR-364 entre os Katukina da TI Campinas, ainda hoje, passados mais de
seis anos, não foram implementadas de modo adequado – como é o caso de
um diagnóstico do estoque faunístico para embasar a elaboração e
execução pelos índios de um plano de manejo de caça. A pavimentação
provocou profundas mudanças na vida dos Katukina, particularmente em
sua dieta alimentar, e também aumentou as invasões de caçadores na
terra indígena e a violência em seu entorno, como registrado nesta
coluna há exatos dois anos. Se os Katukina até agora não foram
devidamente assistidos naquilo que foi previsto no início do
asfaltamento da estrada, na primeira gestão Jorge Viana, quando o
serão? Que garantia terão eles de que os novos impactos serão
minimizados e compensados no futuro próximo, com o uso da rodovia para
escoar a produção petrolífera, se planos de mitigação mais simples,
antes acordados, não foram implementados? Cabe ponderar, ainda, que se
não fosse pela pressão exercida pelos Katukina junto ao governo
estadual, e pela responsabilidade, boa vontade e dedicação de alguns
poucos funcionários, esses planos nunca teriam sido executados.
É
possível crer que planos de mitigação, compensação e monitoramento dos
impactos ambientais e socioculturais resultantes da conjugação do
asfaltamento da BR-364, do manejo madeireiro empresarial nas florestas
estaduais e da exploração de petróleo e gás serão elaborados e
efetivamente cumpridos pelos governos estadual e federal no Alto Juruá?
É difícil acreditar, à luz da experiência recente.
Projeto, impactos e debates às claras
Todas
essas questões, atinentes à ampliação dos impactos que via de regra
resultarão da exploração petrolífera e de gás no Acre, não foram
debatidas até este momento. Se não forem desde já, quando serão?
As
conseqüências da exploração de petróleo certamente não se limitam à
área efetivamente explorada. Uma avaliação meticulosa e precisa da onda
de impactos que se propagará deve ser incluída de imediato na agenda,
para que se tenha plena certeza – isso talvez aumente as incertezas ou
os argumentos contrários – da viabilidade da exploração ou dos custos
que os acreanos podem, ou querem, efetivamente pagar para participar da
concretização de um sonho petrolífero estatal de quase sete décadas.
Consta
do site do senador Tião Viana, e de várias matérias de sua assessoria
de imprensa, que suas gestões junto à ANP para prospectar petróleo no
Acre iniciaram-se há seis anos. No mesmo período, quais providências
tomou para promover estudos e debates que permitissem avaliar os
diferentes cenários que uma futura exploração de petróleo e gás poderá
delinear?
As opiniões e anseios da população acreana
deveriam ter começado a ser ouvidos antes mesmo do início de suas
gestões junto à ANP. Principalmente por se tratar de uma iniciativa do
senador, quem, face às primeiras críticas à sua proposta, pela
possibilidade da exploração incluir áreas habitadas por povos
indígenas, inclusive índios “isolados”, lembrou ter elaborado parecer,
na Comissão de Assuntos Externos do Senado, que contribuiu para a
ratificação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT) pelo Congresso e pelo governo brasileiro.
É
recomendação expressa do art. 6 da Convenção, cabe lembrar ao senador,
a necessidade da consulta, prévia, informada e de boa fé, aos indígenas
e às suas organizações sobre projetos de governo e do legislativo que
venham a causar impactos sobre seus territórios e formas de vida. No
caso dos recursos minerais, o art. 15 da Convenção é igualmente claro:
“(...) os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com
vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os
interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de
se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou
exploração dos recursos existentes nas suas terras”. Dada sua
relevância, procedimentos semelhantes deveriam ter sido viabilizados
junto a toda a sociedade acreana, e especialmente a aqueles que vivem
na floresta, em cujos locais de moradia a prospecção e exploração
poderiam vir a ocorrer.
Mais de seis anos se
passaram, todavia, desde as primeiras iniciativas do senador para obter
recursos para a prospecção. Somente há duas semanas, ocorreram as
primeiras “palestras”, em Rio Branco e Cruzeiro, proferidas por
diretores e técnicos da ANP e da Petrobrás, para iniciar um “debate”
sobre seu projeto. É importante frisar que esses eventos resultaram de
críticas e demandas da sociedade civil, e não necessariamente de um
desejo do senador, como agora procura fazer crer a imprensa.
Organizados com palestrantes recrutados pelo gabinete do senador, com a
clara intenção de legitimar sua proposta, e construídos por uma
tendenciosa campanha de mídia, os “seminários” foram marcados pela
ausência de um debate de fato democrático.
Ambos
eventos pouco contribuíram para o esclarecimento da população acreana.
Esta ficou sem saber, por exemplo, que, na véspera do primeiro anúncio
do projeto do senador na imprensa, a 7 de fevereiro, a Diretoria da ANP
já autorizara a abertura de licitação para contratar “serviços técnicos
especializados de aquisição e processamento de 105 mil quilômetros
lineares de dados aerogravimétricos e aeromagnetométricos nas bacias do
Acre, Madre de Dios e Solimões”, ou seja, a primeira etapa da
prospecção. Aberto a 22 de março, o edital foi “adiado” quatro dias
depois. Previa que os ganhadores do pregão seriam conhecidos a 3 de
abril, um dia depois, portanto, da comitiva visitar Urucu e nove dias
antes do seminário de Rio Branco. Segundo o edital, a prospecção aérea
incluía o território peruano. Na região do Madre de Dios, asfaltando a
Transoceânica, hoje atuam a Odebrecht, a Andrade Gutierrez e a Queiroz
Galvão, empreiteiras que possuem subsidiárias especializadas na
perfuração de poços de petróleo e gás. Apesar da licitação estar
formalmente suspensa, o Diretor da ANP, em entrevista publicada neste
Página 20 a 27 de abril, afirmou que a empresa ganhadora já é conhecida
e que o início da prospecção depende agora de autorização expressa do
presidente Lula, por se tratar de atividade em faixa de fronteira.
Claro
está que a exploração de petróleo e gás pode não se efetivar em
território acreano. Mas, se o senador Tião Viana tem investido tanto de
seu tempo e capital político para viabilizá-la, sua esperança
certamente deve ser outra – e diferente da nossa.
Nos
últimos seis anos, seu projeto deveria ter sido exposto e discutido às
claras, referenciado aos interesses energéticos, viários, comerciais,
empresariais e (geo)políticos, e aos impactos ambientais, a ele
associados. Amplos estudos também deveriam ter sido iniciados,
permitindo que hoje se tivessem fundamentos e opiniões mais sólidos
sobre a viabilidade socioambiental do seu “sonho petrolífero”.
É
certo que não existem ainda respostas para várias perguntas que até
agora, infelizmente, muitos parecem querer, de forma deliberada, evitar
de formular ou de responder. Mas, desta vez, mais ainda do que em
períodos anteriores da história do Acre, não convém improvisar.
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